O Salto

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Litogravuras

Fui às sortes. Depois da recruta mandaram-me para aqui. Vejo passar os barcos lá ao longe, maiores do que a minha aldeia. Lá em baixo há praias, no verão enchem-se de gente e eu, aqui. Estas paredes são velhas, o quartel é um túnel sem tecto. Arranho as tuas iniciais no meu braço com o aparo de uma caneta de tinta permanente. Por que é que não me escreves? Ainda bem que a guerra acabou. Raspo o meu nome na parede, uma letra de cada vez. O sargento nunca vem aqui. À noite tenho medo. Quero-me ir embora. Raspo o meu nome com as unhas, arranho os dentes na parede. Quero sair daqui. Arranco um osso do peito, uma costela e espeto-a na parede. Quero fazê-la sangrar, mas só o meu sangue escorre, das unhas, das nozes dos dedos. Estou aqui à espera dos bárbaros, a vigiar o mar, o estuário do Tejo. Do outro lado, Lisboa. Não conheço Lisboa. A parede brilha com o meu sangue. O sargento nunca vem aqui. A G3 pesa-me no ombro. Se tivesse munições, nem sei o que faria. Acabei de gravar o nome, não sei se escreva também o número. O maldito número de soldado. Mijo na parede para lavar o sangue, mas a parede já o bebeu. O sol começa a nascer. Faltam-me três meses. Por que é que não me escreves?

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Vento ao longo da Costa*

     
 É                                          ondeia                                                  que 

         no              que                         tudo!                lá                       tudo

                     ar                                                   É                                       existe!...
Mário de Sá-Carneiro – Manucure
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Paragem deserta a preto e branco

Quando é que te esqueceste de ser livre? Quando é que nos transformámos nisto?Ainda me lembro daquela manhã fria, das mães temerosas na rua “o que é que se passa, vizinha, acha que é seguro deixar os miúdos irem à escola?”, das aulas agitadas da manhã e do ar assustado dos professores do colégio dos padres. E da hora do almoço, daquele almoço em que o meu pai me abraçou depois do comunicado que o locutor leu na televisão que acabou com um “viva Portugal”, e o meu pai disse viva e abraçou-me desajeitado e ainda hoje me aqueço nesse abraço. E dessa tarde em que substituímos as aulas pela companhia dos soldados que vigiavam as estradas com uns canhões enormes porque nem todos os quartéis tinham aderido e poderiam vir alguns tropas para Lisboa ajudar o governo.
Lembro-me depois do dia em que fomos para o largo do quartel receber os soldados que voltavam de Lisboa e de como toda a gente os queria abraçar e se gritavam vivas a Portugal, ao MFA e ao Spínola, de quem nunca tinha ouvido falar. Lembro-me desses tempos em que parecia que estávamos a reaprender o mundo e todos os dias pareciam feriados, de como íamos descobrindo o país na televisão, num programa em que os militares andavam por todo o lado a explicar essa coisa da revolução, das comissões de trabalhadores, das comissões de moradores, das cooperativas, dos sindicatos, das associações de estudantes e de consumidores… toda uma nova gramática a estrear.
Mais tarde, o largo gritava abaixo o Spínola e abaixo a reacção e apareceram os partidos, muitos partidos e houve eleições. Continuaram a haver eleições mas menos partidos e menos comissões e cooperativas. A pouco e pouco, as pessoas passaram a ter outros interesses, deixaram de pedir coisas para todos e passaram a pedir só para alguns. Muitos foram para os partidos e nunca mais se juntaram no largo. E há os que foram para o governo e ficaram ricos.
Agora, já nem pedimos. Queixamo-nos dos outros por terem o que não temos e preferimos que fiquem tão mal como nós a exigir ser como eles, acusamos colegas que troçam de ministros, batemos nos professores que tentam educar os nossos filhos, revoltamo-nos mais com o golo roubado que com o centro de saúde encerrado, tratamos os imigrantes com desprezo, impomos regras de decoro a funcionárias, processamos jornalistas, votamos em políticos corruptos. E elegemos o filho da puta do Salazar como o maior português!
 
Andamos tão ocupados a ser mesquinhos que nos esquecemos de ser livres.
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Fantasmagorias

"Temos fantasmas tão educados Que adormecemos no seu ombro Sonos vazios, despovoados De personagens do assombro."

Natália Correia Os fantasmas são parasitas que se alojam nas pessoas. Escondem-se algures nas partes mais recônditas do corpo, com uma preferência pelos meandros labirínticos do cérebro. Há fantasmas soturnos, belos e frios. Outros, assombração cruel e permanente; mortos que não morrem. A maioria não passa da aparência imaterial das coisas, desejos por cumprir, inconfessáveis fantasias que se passeiam no meio de nós.

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Monarquia


“Deixando de parte, assim, os assuntos relativos a um príncipe imaginário e falando daqueles que são reais, digo que todos os homens, sobretudo os príncipes por ficarem situados em posição mais proeminente, quando analisados, se fazem notáveis por alguns daqueles atributos que lhes acarretam ou reprovação ou louvor. Assim é que alguns são havidos como liberais, alguns como miseráveis (usando o termo da Toscânia misero, porque “avaro” na nossa língua é ainda aquele que deseja possuir por rapina, enquanto “miserável” chamamos aos que se muito se abstêm de usar as suas posses); alguns são tidos como pródigos, outros rapaces; cruéis ou piedosos; perjuros ou leais; efeminados e pusilânimes ou truculentos e animosos; humanos ou soberbos; lascivos ou castos; simples ou astutos; enérgicos ou tíbios; graves ou levianos; religiosos ou incrédulos, e assim por diante.” Nicolau Maquiavel - O Príncipe 
 
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Mais do que chuva



O vento lambeu as nuvens bem ali no meio das coxas. E o dia deu em chover.

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Epiderme

Parece que era assim no princípio do mundo. Antes do verbo e do sangue. A pele da terra era feita de lama. Água, ferro e fogo numa amálgama indistinta. Só os metais pesados flutuavam e o ar era líquido e mineral. Não havia nomes, o fim podia ser princípio e o princípio veneno.
Parece que vai ser assim no fim do mundo. Quando já não houver sangue nem o som das palavras, até a morte deixará de existir.
 
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Domingo de ramos

 
"Quando chega domingo,
faço tenção de todas as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida."
                                    Manuel da Fonseca
 

Eu não. Eu preparo mentalmente a agenda da semana que se inicia. Caderno de intenções a cumprir escrupulosamente: - Vou terminar os trabalhos em mãos, vou limpar o escritório, vou pintar a sala e o hall de entrada, vou às compras, não me vou esquecer de fazer o jantar todos os dias, vou responder a todos os emails, vou subir o Everest, vou tirar apenas fotografias fantásticas, vou encontrar um emprego fabuloso, vou-me deitar cedo, só vou ver filmes de qualidade, não me vou irritar com ninguém, vou começar a fazer exercício físico, vou descobrir a cura da imbecilidade e a vacina contra a estupidez, só vou comer alimentos saudáveis, vou fazer meditação transcendental, vou dar início a um fantástico novo projecto, vou correr todas as maratona por todas as causas, vou comprar um cão e adoptar um gato, vou ser um gajo fantástico! E vou deixar de confundir as datas, hoje, é Domingo de Páscoa. 

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Incêndio




Um incêndio é uma ocorrência de fogo não controlado. Pode dever-se a causas naturais ou humanas.
Há corações incendiários.


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Há Monstros Debaixo da Cama

Algo de estranho se passa! Isto aqui em cima não é uma fotografia minha. Eu nunca poria uma coisa assim tão, estranha. Sim, que este é um blogue respeitável. O que são estas… coisas? Parecem, sei lá, um bicho Papão, um falso bebé e um casal de siameses mutantes pós Chernobyl. Como é que isto veio aqui parar? Há montros no meu blogue. É de perder a cabeça, anda alguém armado em carapau de corrida. Acho que me vou queixar ao blogger. 
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Do Androids Dream of Electric Sheep?

COMUNICADO
Têm vindo a ser detectadas estranhas cumplicidades entre os funcionários biomecânicos da instalação. A contratação de elementos sintéticos rege-se por Normas rigorosas de conduta, conforme consta nos Regulamentos afixados. Tais comportamentos violam os princípios estabelecidos nos Protocolos em vigor, bem como no Código Geral Disciplinar superiormente aprovado. Lembramos que o não cumprimento destas regras exige a aplicação dos Procedimentos Penais Excepcionais aos implicados: detenção no centro laboratorial, electromiografia, análise espectral do córtex da maderbord e, se necessário, proceder à execução do reset psicomotor e à substituição das respectivas biomemórias.
Determino e mando publicar!

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Jardim das Delícias


Não estou seguro do nome a dar a esta fotografia. O que é grave porque os títulos são tão importantes como as fotos, vestem-nas ou despem-nas a seu belo prazer. São o beijo do príncipe que as acorda, ou da princesa que as transforma em sapos. É que poucas imagens valem por mil palavras e há palavras que valem muito mais do que mil fotografias.
No caso desta, sei que tem de ter jardim, foi a primeira coisa de que me lembrei: olha um jardim. Depois, pensei (ok é cliché)
em paraíso, poderia ser: Jardim do Paraíso. Por outro lado tem uma porta, o que daria… Porta do Paraíso? E porque não apenas, um singelo Jardim? …qualquer coisa assim.
Depois há as músicas, deixa cá ver… tem que ter a “Knockin' On Heaven's Door” obrigatoriamente, o macaco dos Pixies, desenhos animados e o resto logo se vê.
E as delícias? Pois! Ficam para a próxima.

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Revolta camponesa



Fotografia tirada pela janela do carro, parado num semáforo, sem tempo para mais nada do que abrir o vidro, agarrar a máquina (por acaso no banco do lado), disparar à pressa (qual enquadramento, qual quê…) e arrancar já com os automobilistas atrás a apitar furiosamente. A eles, as minhas desculpas.

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