Chovem gaivotas no cais das colunas


O cenário é uma cidade, grande e colorida, encaixada na margem de um rio como uma aguarela na parede de um museu. O mar à distancia da mão em pala sobre os olhos. A câmara percorre ruas estreitas e empedradas num falso plano sequência. Ergue-se do chão e, num elegante movimento de grua, entra por uma janela, mostra o interior de um restaurante num plongé suave, circular, até se fixar numa mesa de onde se afasta um empregado de avental negro até aos pés. Na mesa, um casal lê a ementa, campo/contracampo.
Ela, olhando-o fixamente: O que foi?
Ele, sem tirar os olhos da ementa: Nada, nada.
Ela: Não digas que não é nada que eu já te conheço. O que foi, não há nada que te agrade?
Ele, os olhos sempre na ementa: Não é isso, é…
Ela: O quê, queres ir a outro lado?
Ele: Não, é que me apetecia… apetecia-me um poema
Ela: Apetecia-te o quê? Fala mais alto!
Ele: Apetecia-me um poema. É que ainda tenho o gosto do teu corpo na boca e sinto-me, sei lá, poético
Ela, um zoom nos olhos brilhantes como sóis negros, a mão sobre a mão dele: Mas não tomaste banho?
A câmara afasta-se e passa por uma senhora quase gorda – consoante a latitude – o olhar fixo na baquelite negra e brilhante do telemóvel. "Porque é que não me ligas, o que é que eu te fiz..." Pensa em voz off. Num travelling ágil a câmara contorna o balcão e sai pela porta da cozinha. Um beco com contentores de lixo, grades empilhadas e barris de cerveja, redondos como vocábulos…

Abril é um mês por inventar...

------------------------------------------------------------------------------------------------- ...naquilo que resta do sonho dos cravos.
 

soylent green is people

Soylent Green (À Beira do Fim na tradução portuguesa) é um fantástico filme de ficção, realizado em 1973 por Richard Fleischer e cuja acção se passa no longínquo ano de 2022. Nesse futuro superpovoado os homens esgotaram quase todos os recursos e a maioria das pessoas, pobres e desempregadas, já só se alimenta de um composto energético denominado soylent green, supostamente feito a partir de algas, enquanto os ricos comem coisas raras e caríssimas como fruta, legumes e carne. Um intrépido herói detective irá descobrir que, na realidade, aquilo é feito a partir dos cadáveres humanos…
Lembrei-me disto porque esse futuro já chegou. Só não nos comemos literalmente, mas há gente a alimentar-se de gente. O que são essas coisas dos pactos de estabilidade e das medidas draconianas do FMI se não uma espécie de antropofagia social? (Para não falar dos ataques da corja de piratas, ou melhor, de corsários disfarçados de agências de ranking que abalroam países como caravelas com a mesma sofreguidão pelo saque.)
Estou a exagerar? Algumas das medidas que li (espécie de Robin dos Bosques ao contrário, tirar aos pobres para dar aos ricos) incluem baixar o nosso opulento ordenado mínimo, congelar as pensões de reforma, aumentar os impostos (IVA a 25%!!!), acabar com o 13º mês e por aí fora….
E isto para quê? Para salvar os privilégios de uma dúzia de famílias que são os donos aqui do burgo há muitas décadas e mais uma horda de políticos arrivistas que as servem, ofuscados com a ilusão da sua própria importância. Os eleitos do costume, mais preocupados com os privilegiozinhos, os favores aos amigos, os negócios inconfessáveis e o emprego milionário pós-tirocínio, sacrificado, no governo ou na autarquia, do que com os interesses reais do país
Agora vêm aí mais umas eleições, com metade a abster-se e o resto a dar a vitória a um dos partidos trem-de-cozinha do bloco central. Nada de novo portanto...
Sabem que mais, viva a Islândia.

persona. III

Falamos de máscaras. Do rosto que se coloca sobre o rosto para sermos nós próprios. Os romanos chamavam persona às máscaras do teatro. Per sonare. Expandir a voz.

É de pequenino que se torce o rabo ao futuro. É quando se começa a experimentar as máscaras e a brincar às pessoas crescidas. E às personagens inventadas. E a fazer de conta que tudo poderá ser possível…