"O preço do sal"
(O título desta vez não é meu, roubei-o a um livro de uma das minhas escritoras preferidas, Patricia Highsmith, e não tem nada a ver com isto. E tinha um belíssimo quelique guardado para aqui mas foi a sugestão anterior do Chapa e da Leonor Fê, paciência, também não fica mal no anterior...)
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vós que sois o sal da terra
Era uma vez um rei que tinha três filhas muito lindas. Um dia, em que estavam a jantar, perguntou a cada uma delas por sua vez, o quanto gostavam dele. A mais velha respondeu:
– Quero mais a meu pai, do que à luz do Sol.
Respondeu a do meio:
– Gosto tanto de meu pai como gosto dos meus olhos.
A mais nova respondeu:
– Quero-lhe tanto, como a comida quer o sal.
Tu dizes-me isso assim?! És muito ingrata, filha malvada!
E disse-lhe que a havia de mandar matar. E logo ali ordenou a um criado que a levasse para um ermo e a matasse e lhe trouxesse os seus olhos e a sua língua.
O criado viu-se em grandes aflições, cheio de pena da princesa, logo esta que amava no segredo próprio do decoro e do respeito pelas convenções que a sua condição de plebeu exigia. Com o engenho aguçado pelo desespero, lembrou-se então de matar uma cadela que por ali usava vaguear. Assim fez, arrancou-lhe os olhos e a língua, pôs tudo numa bandeja e levou ao rei seu senhor. A menina, essa, seguiu muito triste por esse mundo. Foi estrada fora até que encontrou um lobo muito bem parecido que lhe… não, não é isso. Vejamos, chegou a uma casa muito pequenina e, cansada que estava, abriu a porta, que não estava trancada, e entrou numa cozinha com uma mesa baixinha e sete cadeiras também pequenas e depois num quarto com sete camas pequeninas e ao ver que não cabia em nenhuma deitou-se de atravessado sobre todas elas e logo ali adormeceu. Ou adormeceria se a história fosse esta que não é. O que de facto aconteceu foi que chegou ao palácio de um outro rei, e aí perguntou se precisavam de uma criada para qualquer trabalho serviçal. Precisavam e ficou. Aconteceu pouco depois que a cozinheira começou a padecer de umas sesões pustulentas, que mais parecia que larvas vivas lhes saíam do corpo, e morreu logo em seguida no meio de grande sofrimento e alarido. E foi assim foi que chegou à cozinha daquele paço real onde se afundou nas tentações do pecado da gula e numa dependência por capões de cabidela e efebos untados com mel.
Um dia veio à mesa um pastel de galinhola com ervas do monte e espargos bravos muito bem feito, e o rei ao parti-lo achou dentro um anel muito pequeno e de grande preço. Perguntou a todas as damas da corte de quem seria aquela jóia. Todas quiseram ver se o sapato, perdão, o anel lhes servia: foi passando de dedo em dedo, até que foi chamada a cozinheira, e só a ela é que o anel assentava na perfeição. O príncipe viu isto e ficou logo tomado de amores por ela, pensando que era de família de nobreza, pois como é sabido, à plebe não servem anéis valiosos em dedos calejados. Começou então a espreitá-la, porque ela só cozinhava às escondidas, e viu-a vestida com trajos de cortesã. Foi chamar o rei seu pai e ambos viram o caso e ambos se apaixonaram pela roliça princesa. O rei, porque era rei, sem demora a tomou em sua alcova enquanto o jovem príncipe seu filho, despeitado e infeliz, encontrou conforto e grande prazer no acto de espreitar atrás de portas e reposteiros e uma vocação insuspeitada por magia negra na esperança de se vingar de seu alvitrante progenitor.
Ora aconteceu que a paixão do rei pela nobre cozinheira cresceu ao ponto de lhe permitir todos os caprichos e se prestar a todas as inconfessáveis demandas. E de tal modo foi que acabou por solicitar ao papa a anulação do seu matrimónio, pagar a avultada bula que tal procedimento exige e pedir a sua delicada mão em casamento. A menina consentiu mas tirou por condição que queria cozinhar pela sua mão o jantar do dia da boda.
Para as festas de noivado convidou-se o rei que tinha três filhas, e que perdera a mais nova. A princesa cozinhou o jantar, mas nos manjares que haviam de ser postos ao rei seu pai não botou sal de propósito. Todos comiam com vontade, mas só o rei convidado é que não comia. Por fim perguntou-lhe o dono da casa, porque é que o rei não comia? Respondeu ele, não sabendo que assistia ao casamento da filha:
– Em boa verdade estou desconsolado porque a comida não tem sal.
O noivo e rei fingiu-se raivoso, expondo com arte grande colecção de trejeitos de indignação, e mandou que a cozinheira viesse ali dizer porque é que não tinha botado sal na comida. Veio então a menina vestida de princesa, mas o seu pai não a reconheceu, assim mais nutrida de carnes que estava. Ao que esta se apresentou na sua frente e lhe perguntou com lágrimas nos olhos:
- Ah, meu pai, não se lembra da sua filha mais nova? Não se lembra que eu lhe disse que gostava de si como a comida quer o sal?
O pai lembrando-se, suspirou:
- Ah, minha querida filha, tinhas razão! Perdoa-me!
Abraçou-se a ela e nisto caiu para o lado e morreu.
– Quero mais a meu pai, do que à luz do Sol.
Respondeu a do meio:
– Gosto tanto de meu pai como gosto dos meus olhos.
A mais nova respondeu:
– Quero-lhe tanto, como a comida quer o sal.
Tu dizes-me isso assim?! És muito ingrata, filha malvada!
E disse-lhe que a havia de mandar matar. E logo ali ordenou a um criado que a levasse para um ermo e a matasse e lhe trouxesse os seus olhos e a sua língua.
O criado viu-se em grandes aflições, cheio de pena da princesa, logo esta que amava no segredo próprio do decoro e do respeito pelas convenções que a sua condição de plebeu exigia. Com o engenho aguçado pelo desespero, lembrou-se então de matar uma cadela que por ali usava vaguear. Assim fez, arrancou-lhe os olhos e a língua, pôs tudo numa bandeja e levou ao rei seu senhor. A menina, essa, seguiu muito triste por esse mundo. Foi estrada fora até que encontrou um lobo muito bem parecido que lhe… não, não é isso. Vejamos, chegou a uma casa muito pequenina e, cansada que estava, abriu a porta, que não estava trancada, e entrou numa cozinha com uma mesa baixinha e sete cadeiras também pequenas e depois num quarto com sete camas pequeninas e ao ver que não cabia em nenhuma deitou-se de atravessado sobre todas elas e logo ali adormeceu. Ou adormeceria se a história fosse esta que não é. O que de facto aconteceu foi que chegou ao palácio de um outro rei, e aí perguntou se precisavam de uma criada para qualquer trabalho serviçal. Precisavam e ficou. Aconteceu pouco depois que a cozinheira começou a padecer de umas sesões pustulentas, que mais parecia que larvas vivas lhes saíam do corpo, e morreu logo em seguida no meio de grande sofrimento e alarido. E foi assim foi que chegou à cozinha daquele paço real onde se afundou nas tentações do pecado da gula e numa dependência por capões de cabidela e efebos untados com mel.
Um dia veio à mesa um pastel de galinhola com ervas do monte e espargos bravos muito bem feito, e o rei ao parti-lo achou dentro um anel muito pequeno e de grande preço. Perguntou a todas as damas da corte de quem seria aquela jóia. Todas quiseram ver se o sapato, perdão, o anel lhes servia: foi passando de dedo em dedo, até que foi chamada a cozinheira, e só a ela é que o anel assentava na perfeição. O príncipe viu isto e ficou logo tomado de amores por ela, pensando que era de família de nobreza, pois como é sabido, à plebe não servem anéis valiosos em dedos calejados. Começou então a espreitá-la, porque ela só cozinhava às escondidas, e viu-a vestida com trajos de cortesã. Foi chamar o rei seu pai e ambos viram o caso e ambos se apaixonaram pela roliça princesa. O rei, porque era rei, sem demora a tomou em sua alcova enquanto o jovem príncipe seu filho, despeitado e infeliz, encontrou conforto e grande prazer no acto de espreitar atrás de portas e reposteiros e uma vocação insuspeitada por magia negra na esperança de se vingar de seu alvitrante progenitor.
Ora aconteceu que a paixão do rei pela nobre cozinheira cresceu ao ponto de lhe permitir todos os caprichos e se prestar a todas as inconfessáveis demandas. E de tal modo foi que acabou por solicitar ao papa a anulação do seu matrimónio, pagar a avultada bula que tal procedimento exige e pedir a sua delicada mão em casamento. A menina consentiu mas tirou por condição que queria cozinhar pela sua mão o jantar do dia da boda.
Para as festas de noivado convidou-se o rei que tinha três filhas, e que perdera a mais nova. A princesa cozinhou o jantar, mas nos manjares que haviam de ser postos ao rei seu pai não botou sal de propósito. Todos comiam com vontade, mas só o rei convidado é que não comia. Por fim perguntou-lhe o dono da casa, porque é que o rei não comia? Respondeu ele, não sabendo que assistia ao casamento da filha:
– Em boa verdade estou desconsolado porque a comida não tem sal.
O noivo e rei fingiu-se raivoso, expondo com arte grande colecção de trejeitos de indignação, e mandou que a cozinheira viesse ali dizer porque é que não tinha botado sal na comida. Veio então a menina vestida de princesa, mas o seu pai não a reconheceu, assim mais nutrida de carnes que estava. Ao que esta se apresentou na sua frente e lhe perguntou com lágrimas nos olhos:
- Ah, meu pai, não se lembra da sua filha mais nova? Não se lembra que eu lhe disse que gostava de si como a comida quer o sal?
O pai lembrando-se, suspirou:
- Ah, minha querida filha, tinhas razão! Perdoa-me!
Abraçou-se a ela e nisto caiu para o lado e morreu.
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beijar um anjo
Quando eu era miúdo, pequeno, nos primeiros anos da primária, beijei um anjo. Um dia levaram-me, a turma toda, a um funeral. Não sei se foi o meu primeiro funeral, não me lembro, mas impressionou-me toda aquela gente a andar devagarinho e, quase, em silêncio (na minha terra, que era vila nesse tempo, os funerais faziam-se a pé pela estrada principal, sem vergonha de existirem ou de interromperem o trânsito). Pareceu-me enorme a multidão que se fechava à minha volta e me tapava a luz e o caminho, de modo que fui arrastado, quase sem me aperceber, para dentro do cemitério. Seguíamos atrás do irmão, ou irmã, já não sei, de um colega nosso, que morreu com poucos meses. A certa altura a multidão formou uma clareira à volta de uma campa aberta com um buraco, que me pareceu estranhamente estreito, e fomos empurrados para o centro, para junto de um pequeno caixão (que a minha memória me diz ser de um branco brilhante, pérola ou assim) em cima de um suporte baixo e com pernas pretas. Puseram-nos em fila, eu sem saber porquê, até que fiquei bem em frente ao féretro (foi quando aprendi esta palavra que nunca tinha ouvido) e alguém me empurrou suavemente pelo ombro e me disse quase ao ouvido: vá, dá um beijo ao anjinho…
E eu dei. Era frio e cheirava a flores murchas, apesar da pilha de ramos e coroas que se acumulava à volta. E este não tinha asas, aquelas asas de penas de pássaro como nas gravuras do catecismo. Havia dois tipos de anjos, como toda a gente sabia, os grandes e loiros de túnica, com asas enormes no meio das costas e espadas flamejantes em punho, e uns pequenos, gordinhos e despidos que mais parece que as asas lhes saem pelos ombros. Este era pequenino, quase só um monte de cetim brilhante e um rosto baço de olhos fechados, uma touca de pérola sobre a cabeça demasiado grande...
Não sei como perdi a turma, recordo-me apenas de repente estar só e de um interminável regresso a casa. Os passos arrastados com o peso daquele anjo que me agarrava os ombros, os braços curtos apertados com força à volta do pescoço, a puxar-me para trás, o ar frio, líquido e grosso a queimar-me a garganta (era inverno, lembro-me que era inverno), os olhos molhados a adivinhar o caminho que mal via. E de ser noite. E da minha mãe, recortada na ombreira da porta, com aquele ar de quem me vai ralhar, isto é que são horas, e do seu olhar encontrar o meu e emudecer as palavras, e da luz dos seus olhos e do sorriso tão doce que me fez então soltar os ombros e os pés, e as pernas a correr mais rápidas que o seu tamanho até àquele abraço, que me levantou do chão e me levou em silêncio para dentro de casa…
E os anjos nunca mais foram meninos gordos nem tiveram asas nem empunharam espadas flamejantes. Apenas uma touca cor de pérola numa cabeça demasiado grande, o corpo perdido no meio do cetim, tão leve que mal o sinto quando às vezes vem poisar no meu ombro.
E eu dei. Era frio e cheirava a flores murchas, apesar da pilha de ramos e coroas que se acumulava à volta. E este não tinha asas, aquelas asas de penas de pássaro como nas gravuras do catecismo. Havia dois tipos de anjos, como toda a gente sabia, os grandes e loiros de túnica, com asas enormes no meio das costas e espadas flamejantes em punho, e uns pequenos, gordinhos e despidos que mais parece que as asas lhes saem pelos ombros. Este era pequenino, quase só um monte de cetim brilhante e um rosto baço de olhos fechados, uma touca de pérola sobre a cabeça demasiado grande...
Não sei como perdi a turma, recordo-me apenas de repente estar só e de um interminável regresso a casa. Os passos arrastados com o peso daquele anjo que me agarrava os ombros, os braços curtos apertados com força à volta do pescoço, a puxar-me para trás, o ar frio, líquido e grosso a queimar-me a garganta (era inverno, lembro-me que era inverno), os olhos molhados a adivinhar o caminho que mal via. E de ser noite. E da minha mãe, recortada na ombreira da porta, com aquele ar de quem me vai ralhar, isto é que são horas, e do seu olhar encontrar o meu e emudecer as palavras, e da luz dos seus olhos e do sorriso tão doce que me fez então soltar os ombros e os pés, e as pernas a correr mais rápidas que o seu tamanho até àquele abraço, que me levantou do chão e me levou em silêncio para dentro de casa…
E os anjos nunca mais foram meninos gordos nem tiveram asas nem empunharam espadas flamejantes. Apenas uma touca cor de pérola numa cabeça demasiado grande, o corpo perdido no meio do cetim, tão leve que mal o sinto quando às vezes vem poisar no meu ombro.
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paraísos artificiais
e caso se tenham esquecido, estamos em plena campanha eleitoral, ah o que eu gosto de campanhas eleitorais, a alegria, os debates, as caravanas, a festa, os beijinhos na rua, as promessas… e então esta, em que os dois candidatos principais me enchem de orgulho e esperança e… ou vou ali cortar os pulsos e já venho, ou apanho uma moca que dure até ao próximo mandato, sem silvas nem alegres, sei lá…
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a realidade agora a cores
o guarda-costas...
... ou, o improvável anjo da guarda (há fotos, como esta, que são tramadas, a luz não está bem, muitas sombras e confusão, ponho não ponho, aproveito-a na mesma assim tão imperfeita? mas gosto dos miúdos que não têm a culpa da hora ser má... que se lixe, vai na mesma; pois, e o título? é que não me ocorre nada de jeito... põe-se de lado e logo se vê; e não é que ela anda para aqui há mais de um mês a olhar para mim com olhos de cachorro em pulgas para ir à rua e eu a fingir que não lhe ligo, até que já não dá mais e, pronto, vai mesmo assim com uma espécie de subtítulo plano B, sei lá qual seria melhor, parecem-me os dois mauzinhos; ah, e agora os queliques para isto, bolas, só tenho coisas que me ralem...).
compromisso
o amor não faz prisioneiros, disseste-me tu um dia. na boca o sangue escorria ainda e os teus olhos em brasa marcavam-me a pele como os ferros às reses. lá fora o temporal latejava-me as têmporas. mas o amor não se rende, disse eu, a febre a queimar os lençóis. um relâmpago encheu o quarto de luz, acendeu no meu corpo um mapa de estigmas, os sulcos fundos das tuas unhas. o ar cheirava a suor e a sexo e ao cheiro a pólvora das trovoadas. a tua voz rouca emagreceu num rasto de mágoa (ou sou eu a desejar que assim tenha acontecido) quando disseste, o amor não é eterno, sabes, gasta-se como o desejo, só permanece a vontade que temos dele. mas… comecei eu e esmagaste-me a boca com um beijo, a língua morta. acrescentaste ainda, não, não tens razão, o que resta do amor é o compromisso… e é essa a razão porque te deixo, meu amor.
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