Aqui há muitos anos, no tempo do filho da puta do Salazar, quando eu andava na escola primária, para aí na segunda ou terceira classe, ia à catequese e até ajudava à missa e tudo – desajeitadamente, que se fartaram depressa das minhas trapalhadas.
Um dia, estava eu na igreja velha da minha terra, sozinho com a, creio que era dona Fernanda - se não era passa a ser, já não me lembro bem - uma senhora, para mim velha, de preto, que estava lá sempre a limpar e a arranjar as flores, embrulhada no cheiro a lixívia das beatas. A dona Fernanda, suponhamos, chamou-me e disse que tinha de sair, que não se demorava nada, para eu acender as velas do altar-mor e “não mexas em mais nada, ouviste?”.
Ora, todo ufano com a responsabilidade, agarro naquela coisa que dum lado acende e do outro apaga e acendi as velas do altar-mor, e as outras ao lado que não sei bem se também são ou não e... olhem, acendi as velas todas, mas mesmo todas, mesmo aquelas lá em cima onde só chegava empoleirado no escadote. E não é que ficou linda a igreja assim toda a luzir no hálito do escuro?
Bom, acontece que, estava eu pasmado no meio da igreja a contemplar todas aquelas luzes, quando, olhando melhor, reparo num brilho diferente no rosto de uma santa com ar triste lá em cima numa espécie de nicho ou coisa assim. Arrasto o escadote, que felizmente tinha rodas para as minhas fracas forças de sete ou oito anos, e trepo pelos degraus acima até ficar tête-à-tête com a santa que nem pestanejou com a minha súbita presença. Ao olhar com atenção para a cara pintada da santa, reparei que tinha lágrimas no sítio das lágrimas a escorrerem pelas faces. Lágrimas mesmo, líquidas e… vermelhas, daquele vermelho escuro como o sangue das galinhas que a minha avó matava no quintal, a esguicharem para uma tigela com vinagre.
“O que é que estás a fazer aí meu malandro quem é que te mandou acender as velas todas eu não te disse que eram só as do altar-mor” ou qualquer coisa assim, que só percebi que a dona beata estava a ralhar comigo e eu “a santa está a chorar”, “o quê? não desvies a conversa”, “a santa está a chorar sangue", “o quê!? tu não inventes blasfémias…”, “juro que está a chorar, venha cá ver, olhe:” o dedo pintado de vermelho e nem me lembro de ter tocado nas lágrimas… A dona lixívia arregala os olhos, aproxima-se, tira os óculos põe os óculos, tira os óculos limpa os óculos à camisola, arregala ainda mais os olhos e cai de joelhos a benzer-se, os olhos a explodirem em lágrimas normais.
Fica assim montes de tempo, com os lábios a abrirem e a fecharem como se tivesse a espinha de uma palavra entalada na garganta. Depois começa a emitir um som abafado vindo lá de dentro do negro das roupas, eu sem perceber nada… sei que, às tantas, estava ao pé dela a tentar ouvir e nisto agarra-me pelos braços – foi cá um cagaço – a olhar-me com os olhos molhados e enormes atrás das lentes grossas e a balbuciar uma coisa que ia crescendo como se rodasse o botão do volume, até que percebi milagre milagre milagre e não se calava, a tenaz das mãos a magoarem-me os pulsos e eu a sacudir os braços assustado “ai que me está a aleijar chiça”, lá me soltei nem sei como e fugi dali para fora, para a normalidade da luz do dia…
Corri até à casa dos meus avós e contei a história das lágrimas (não a das velas, olha pois…), o meu avô olha para mim “qual santa, a do manto grande?”, “acho que sim, aquela lá de cima”, “isso não é sangue, é resina”, “como é que sabes?” perguntou alguém que já não me lembro “arranjei essa santa uma vez, a gaiola que tem por baixo da roupa estava toda podre, era melhor fazer uma nova mas o sovina do padre não quis – o meu avô era marceneiro – a cabeça é feita de uma madeira exótica (não consegui fixar o nome anguloso e tropical) que deita uma resina assim encarnada”. E se o meu avô o diz… Adiante.
Ao fim de um dia ou dois a vila estava cheia de gente que acorria de todo o lado para “assistir ao milagre” e já vinha nos jornais e deu na rádio e “parece que vem aí a televisão”… Eu voltei então à igreja, havia uma grande fila (bicha, como se dizia dantes) à porta, dei a volta pela sacristia e entrei pela porta pequena e aquilo estava cheio de gente que eu não conhecia, de pé e ajoelhada, a rezar e a cantar, o padre à nora, já roxo, a tentar manter a “ordem na casa do xenhor!”. À frente da santa, um grupo colorido, lantejoulas e roupas assim mesmo esquisitas para a pequenez da minha vila, gente do circo – era o tempo da feira de Maio – que tinha vindo ver o milagre e o milagre era ver aquelas cores todas juntas ali na igreja.
Foram uns dias confusos até que veio o bispo, e o sacristão foi chamar-me à escola “dá licença senhora professora é que o senhor bispo quer conhecer a criança que descobriu o milagre” eu a escorregar pela carteira abaixo, a fazer-me pequenino, a professora a enrugar a testa naquele jeito de quando a gente não sabia responder quando ia ao quadro e o sacristão a apontar “aquele ali” o dedo curtinho muito esticado, uma pistola a apontar para mim. “Este?!” um guincho de troça e incredibilidade a sair da testa enrugada, o sacristão a abanar a careca com força e a fazer saltar os três cabelos atravessados de uma orelha à outra “bom, vai lá, mas depois contas-me tudo, ouviste?”, “sim sôpsora”, já atrás do sacristão, pouco maior do que eu, em direcção à igreja.
Levou-me até à sacristia onde estava um padre vestido de saias vermelhas ao lado do padre da terra, de saias pretas, “vem cá cumprimentar o xenhor bispo”, estico a mão num passoubem bem-educado, o padre “beija o anel, beija o anel” e eu basbaque a olhar para ele “beija o anel do xenhor bispo”. O bispo “deixa lá o miúdo” e para mim, “então meu filho, dize-me cá, o que achas do nosso milagre?”, “o quê, aquilo? é só resina”, a boca do bispo a arredondar-se num ó de espanto, e eu “é por causa da gaiola”, o Ó agora maiúsculo, “disse-me o meu avô!".