Foi há quase cinquenta anos. O
corpo enxuto, obediente, pernas de "comando". Em Portugal, Salazar (ia
dizer o filho da puta do Salazar, é sempre assim que penso nele) reinava como
senhor absoluto num país a preto e branco. Pobre, sujo, triste. A pele a
romper-se em sangria de gente a escorrer pelas fronteiras.
O homem conheceu os portugueses há
mais tempo ainda, em terras de França. Pobres e escuros, a viverem em locais
pobres e escuros, humidade no meio da lama, os bidonville. Mas os seus modos
afáveis e francos "vai um copinho?" "coma qualquer coisa"
conquistou o homem. Também ele um deslocado, exilado em França, a terra da sua mãe. Fugido da prisão ou da morte no seu Haiti natal, questão de revoltas e
revoluções, de luta pela injustiça que lhe ficou gravada na pele. Os petits
portugais conquistaram a sua simpatia e a sua atenção. O homem é fotógrafo de
profissão e arte, e começa a fotografar os portugueses que vivem na lama dos
bidonvilles, à sombra de Paris, a cidade luz que atrai como às traças e só os recebe para trabalhar, formiguinhas
diligentes, numa cidade que se reconstrói depois da guerra.
Os portugueses interessam-no, a
sua vida dura, a incrível travessia de uma península continental, dita ibérica,
governada por dois ditadores em conveniente pacto ibérico. O modo como
conseguem ficar transparentes, invisíveis, nas fronteiras da raia daqui, a
enganar guardas-fiscais e guardias civis, na tremenda provação dos Pirenéus onde
alguns deixaram os ossos aos bichos no fundo das ravinas - e chegará mesmo a transformar-se
em sombra para fazer com eles a travessia das fronteiras.
O homem quer conhecer o país dos
portugueses e viaja a Portugal, ao Norte primeiro, a Lisboa depois, no agora
desta narrativa. Há quase cinquenta anos. Está em Lisboa, a câmara é o
prolongamento natural do olhar que tudo regista na sua memória de película: o
quartel do Carmo, as masmorras do Aljube, os bairros da lata a abraçar Lisboa.
Dos bidonville para os bidonville, escreverá ele, em jeitos de legenda numa
fotografia.
A dado momento, repara em duas
sombras que o seguem para todo o lado. Não lhe dizem nada, mas estão sempre
presentes para onde quer que vá. Amanhã regressa a Paris e só pensa nas
fotografias, em salvar as fotografias. Tornar os rolos tão invisíveis como os
emigrantes no "salto". Talvez colá-los ao corpo, é isso, colá-los ao
corpo, mas como? O homem entra numa farmácia para comprar adesivo e pensa
"e se os gajos vêm perguntar, inquirir como é do regulamento?".
Compra uma caixa de aspirinas, algodão, álcool, mercurocromo e adesivo. Sai da
farmácia e disfarça o olhar, uma das sombras a entrar na farmácia, claro.
No hotel faz as malas e dissimula
rolos, em branco ou inutilizados, no meio da roupa, "nas cuecas sujas".
Cola os rolos ao corpo, nas costas, sobre os rins "como é que as mulheres
conseguem prender o sutiã com tanta facilidade?" pensa com inveja.
Veste-se. Chega ao aeroporto, dirige-se ao balcão e é agarrado por homens
fardados e sem farda, levado para uma sala onde umas mãos o revistam,
superficialmente, enquanto outras mãos revolvem o interior das malas. E
encontram os rolos com um sorriso de triunfo, um após outro. O homem está
sentado, as costas dolorosamente apertadas contra a cadeira, não vá o adesivo
descolar-se com a transpiração.
Os rolos escondidos são levados
para fora da sala. Ele não. Fica ali sentado até perder o avião, as costas a
esmagar as costas da cadeira, uma semana depois ainda tinha nódoas negras.
"E se revelam os rolos?" a comichão da dúvida a rondar, o receio,
pelas fotografias, salvar as fotografias. Finalmente deixam-no embarcar. No
avião, os rolos ainda fundidos nas costas, não vá o diabo... Paris. As
fotografias passaram, clandestinas, a "salto" como os petits
portuguais. Só que não vão para as barracas no meio da lama, vão ser montra de
um país que se quer discreto, nas páginas da imprensa internacional. O guarda-republicano à porta do Aljube será mesmo capa da Time.
Mas isso agora é outra
história...
4 comentários:
Um senhor mesmo!!!
https://www.youtube.com/watch?v=1EYT3z9YO5M
Belíssima referência.
great portrait!
https://www.youtube.com/watch?v=UjTTN_tQLt8
https://www.youtube.com/watch?v=-EXftUM4dLc
beijos dear
Diz o exemplo da azeitona que para dar a luz ao mundo mil tormentos há que padecer. Gosto de azeitonas, não sei se o mundo as merece.
https://www.youtube.com/watch?v=eZ6jckjqQXw
Abraço
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