sobre a minha pele tu não sabes nada


Tento erguer-me em bicos dos pés acima da minha própria mortalidade. Estico-me por cima do mundo na tentativa de um pequeno vislumbre, uma nesga de luz. Olhos de gato em noite de lua nova. Os anos sabem a chumbo no arrastar dos passos. Não os que passaram voláteis, éter destapado, mas os que faltam. Estes que se aproximam num comboio desgovernado. Torrente de lava imparável a queimar sonhos e a vida que resta. O sangue que se envenena lentamente e os ossos, a furarem o mapa do corpo, a reinventarem azimutes de dor em novos lugares. Noites que se abrem em clarões negros de falta de ar. E nem quero falar da morte. A Terra gira indiferente a tudo o que não seja a sua vertigem de carrossel. Não há apeadeiros, apenas os nomes das estações a escorrerem borrões na paisagem. 
O fim está sempre próximo depois da pele.

diário gráfico


Ao meu lado, uma mulher jovem pousa na perna azul uma mão de unhas pintadas em diagonal vermelho, brilhante. No anelar, um anel de metal branco e liso acentua um tom cuidadosamente misterioso. É bonita mas não gosto dos sapatos.
Do outro lado, um grupo de homens estrangeiros, de pele muito escura e traços quase europeus (seja lá isso o que for), asiáticos, talvez do Bangladesh, seguram nas mãos maços de papéis oficiais que encerram o seu futuro de cidadãos residentes neste país quase europeu.
Na televisão passa o programa da tarde que é igual ao programa da manhã, só que é à tarde. Donas de casa (nunca gostei desta expressão) e reformados de ambos os géneros batem palminhas ao ritmo de uma música que não oiço, uma mulher gorda e muito loura canta e a anfitriã rege tudo com um sorriso maternal e triunfante de abelha-mestra, de cerimónias.
Nos auscultadores enfiados nos meus ouvidos, Piazzolla e Gary Burton esgrimam instrumentos, num duelo feito de cumplicidades, e é estranho, no enorme ecrã à minha frente, ver aquelas pessoas a moverem-se ao ritmo da distância que separa o planeta onde vivem da realidade paralela onde eu estou sentado. Burton martela as notas a atapetar os passos elegantes do bandoneon num bailado perfeito que contrasta com as imagens da cantora loira e gorda a ensaiar bamboleios de pato nos saltos muito altos das suas botas de cano muito alto.
De repente, os números no monitor passam inesperadamente rápidos – gente que desistiu, com certeza – e a minha vez está quase a chegar.
Sou o 164. É agora.

Afinal não é aqui, é no outro Registo.

Olha a minha vida!...

o azul cinzento do céu

Esta, desta vez, é para o senhor administrador Remus. É uma questão de Pontos de Vista.

retrato de uma espécie de anjo revelado pela luz eléctrica


pois. ou talvez seja um fantasma, ou o fantasma de um anjo, ou o fantasma de um fantasma, ou um anjo fantasma... não sei, não consegui ver lá muito bem...

na sombra mais escura


é noite e não está escuro o suficiente para não ter de te encarar. não suporto a luz que ilumina o ódio do teu rosto. os olhos acesos dos predadores nocturnos. raivas a estalarem os dedos nos pinheiros da avenida. as únicas florestas que o fogo não devorou. nem os dentes permitiram identificar os corpos. há tantos dias que não chove e as cinzas cobrem tudo. rostos negros de fuligem. as órbitas fundas. tão fundas que já só recebem o eco da luz. aquela reverberação que faz estremecer os abutres.

é lua nova e nem isso apaga as queimaduras dos dedos. mais escuras ainda são as nódoas negras no mapa da pele. nas raízes dos ossos. espalhas o medo como quem propaga um vírus. um gás tóxico e mortal. refugio-me na sombra mais escura da noite. escrevo às apalpadelas. uma palavra de cada vez no ritmo de um alcoólico anónimo. não sei se o que sinto é sentir ou se já não sinto nada. secaste em mim rios de artérias com o teu hálito de vampiro. os dentes a drenarem-me o que resta dos poços. o deserto a invadir tudo. a garganta aberta a impedir o grito.

talvez exagere. admito-o. sei que colecciono melodramas como outros caixas de fósforos. que tantas vezes tenho afrontamentos operáticos e achaques teatrais. mas não encontro outro modo de não te dizer mais nada. por isso morro-me para ti (para não ter de te arrancar esse sorriso trocista com um martelinho de ourives. um dente de cada vez). e declaro a quem interessar que quando nascer quero ser cremado. sem pompa mas com circunstância


A


E pronto, com este começo, assim termina este abecedário ilustrado. Ufff! Espero que vos tenha agradado. E é também a minha prenda de aniversário deste belogue que faz hoje 3 anos. Foi um prazer. Bêjos e/ou abraços.

Almanaque Borda d'Água





(ou as pequenas ironias que o inverno faz desaguar na praia)

B

B de breviário de coisas breves, balanço de bagatelas.
B de baboseiras brejeiras. Bacoradas e balelas.

B de bicho, búfalos bicornes, bois e baleias, babuínos genuínos, búzios e brontossauros, bodes e bacalhaus.
B de bactérias bizantinas buliçosas a burilar o bolbo-raquidiano.
B de brigas, de baionetas fora da bainha, de batalhas, bestas e blindados.
B de bailarico e bailado em jeitos de baile mandado.
B de bica e bagaço, brandy, bafo, baforada a empestar a madrugada.
B de baba de bebé baboso e de bêbado babado a bolsar para o chão.
B de baba de camelo.
B de beijo repenicado na bochecha brilhante.
B de boca beijada.
B de boda.
B de bacanal. Brilhantina na blusa e batom no blusão.
B de bacante barroca ou burguesa banal.
B de bígamo bipolar a aparar a bravata do bigode.
B de balada badalada. B de barro. B de berro.
B de birra.
B de bula, de burla e de burca.
B de burocracia boçal e berrante.
B de boletim oficial a fingir que é jornal.
B de benévolo benefício a disfarçar o vício em obras de beneficência.
B de bengala e barriga benfazeja a arrotar a cerveja.
B de bolas de Berlim, boleimas, bolachas e brioches.
B de brincos-de-princesa.
B de bossa nova.
B de basta por agora que vou bazar daqui para fora.


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