Sabotagem intergalática




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Todos os dias são hoje.


 
Hoje é dia de gostar de ti.
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“Versos da foz dos rios”

Dificuldade:
quem fala dos trabalhos que passou, no momento da chegada? Só quem desceu o rio, perdido na corrente
Eu mergulho, apenas nos rios a quem me dou, para a alegria de alcançar, de cada um, a sua foz
Preço:
Local de encontro, a foz de um rio é generosa. Dá-se-nos, no momento em que nos damos
Ingredientes:
três desejos de aventura; dois sonhos de juventude; uma paixão adolescente; um momento de cansaço verdadeiro; paciência de pescador

Preparação:
Lanço-me ao rio, sem medo e sem vergonha
Meu sonho é navegar é ser feliz
E se agora falhar tento outra vez

A aventura começa se alguém sonha
O futuro é também o que se quis
Eu sei: há sim e não e talvez

Hei-de chegar à foz deste meu rio
Hei-de encontrar meu leito derradeiro
Hei-de ser eu. Hei-de cumprir-me inteiro

Consumir:
Lentamente, sem pressas insatisfeitas, dando espaço aos sonhos e ao cansaço.

(de: Receitas Poéticas de Xico Braga - que me deu o seu livro uma noite destas na Trafaria. Xico, desculpa a fotografia não ser a p&b, eu até experimentei, mas gosto mais dela assim.)

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O desespero é um verme que nos rói por dentro.

 
 
Um verme que encosta a cabeça de broca ao nosso corpo e nos perfura a pele. Que nos invade as artérias, que trilha, arranha e morde, numa fúria violenta. Imparável. Ataca primeiro as cordas vocais para nos afogar o grito na garganta. Depois escava longos túneis, com a sua boca voraz repleta de dentes – como a dos tubarões – e garras como navalhas com que nos corta o ânimo e despedaça o alento. Penetra bem fundo num emaranhado de canais que nos chegam aos órgãos, que atingem o cérebro e rasgam o coração. Constrói galerias labirínticas que percorre incansável,  num rasto de excrementos, onde deposita ovos de medo e dor. 

O desespero arranca-nos pedaços do corpo como a lepra. Vai minando a carne até apodrecer, até caírem bocados no chão. Restos de nós, sem peso e sem nome, cinzas peganhentas que nem a chuva lava nem o vento espalha. Como os leprosos exibimos estigmas que nos afastam dos outros e nos isolam numa mortalha opaca e suja que não nos deixa enxergar cura ou salvação. 

O desespero é um revólver contra o palato. Uma lâmina de barba nos pulsos. Veneno de ratos na sopa. Um imperceptível hálito de automóvel. Uma corda presa na trave. Um tubo de comprimidos vazio. Um salto da ponte. Um passo a mais na falésia. Seringa. Copo de vinho. Pode ser a gota de água.

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Hora de ponta

 
Tivesse eu assim um cavalo e tudo seria diferente. Um corcel negro e uma sela dourada e brilhante como este sol que nos queima. Um alazão para partir à desfilada, arrancar num turbilhão de pó e de vento que faria voar o meu chapéu de palha e a minha triste timidez. Tivesse eu um cavalo e também usaria turbante, um belo turbante branco, enrolado em voltas perfeitas. E correríamos num galope selvagem, tiro certeiro, que me faria chegar junto de ti. 

E tu virias à janela no teu kaftan bordado, olharias para mim com os teus olhos negro e sorririas. Depois chamarias a tua mãe e as tuas irmãs – o teu irmão mais novo correria até mim para acariciar o cavalo e pedir-me que o deixasse levar até ao curral, onde lhe daria água fresca e cevada – e todas as mulheres da casa viriam à porta para me receber. Seria convidado a entrar para a sala onde me farias sentar no tapete mais antigo, entre almofadas de seda. A seguir, entraria a tua mãe com um tabuleiro com chá e bolinhos de sésamo e mel. Tu própria me servirias e, quando pegasse no copo que tu me estenderias, as minhas mãos roçariam nas tuas, dentada de fogo na pele. E ergueria os olhos para encontrar a chama negra dos teus e nunca uma mulher olhou alguém assim desse modo. 

E sorvi-te em cada gole desse chá, e cravei os dentes na tua pele em cada pedaço de bolo. E durante todo esse tempo, os nossos olhos permaneceram colados, unidos como os cães às cadelas, as tuas narinas frementes como as do meu cavalo quando galopa. Sinto a garganta rouca e o peito a arder, mas não é o calor do chá que me queima, é o cheiro do teu corpo. O hálito do fundo do teu corpo que me entontece mais que o fumo do naguilé e…

Tivesse eu um cavalo e talvez tudo fosse diferente e, talvez assim, tu soubesses o meu nome e eu partiria veloz…

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*para ti

Arte de bem cavalgar

Não te esqueceste de nada?
Acho que não, meu pai.
Deste comer às galinhas?
Sim, meu pai.
Soltaste as cabras?
Sim, meu pai.
Apagaste a luz?
Sim, meu pai.
Não te esqueceste dos anos da tua mãe?
Não, meu pai.
O que é que lhe vais dar?
Um perfume.
Outra vez? Não lhe deste um perfume no ano passado?
Não, meu pai, foi há dois anos, mas é o que ela quer. 
Como é que sabes?
Disse-me a tia.
E o que é que estiveste a fazer ontem à noite, que te deitaste tão tarde?
Estive na internet, meu pai.
Ah, a internet.


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Manual de instruções para o uso correcto das ferramentas

 
A escolha dos utensílios certos não é ciência menor. O cirurgião elege o instrumento exacto para aquele momento preciso. As brocas do dentista são dispostas com a mesma maníaca precisão com que o coleccionador espeta borboletas mortas num quadro de cortiça. Um chef cuida das suas facas com o rigor que o assassino profissional põe na manutenção das suas armas. É igual o critério que determina a escolha: a faca utilizada para cortar as finíssimas fatias de um carpaccio de atum não é a mesma que despedaça os ossos de um entrecosto; a distância da vítima dita o comprimento do cano, o calibre da arma e o tipo de munição a usar. E o que sobra é o gesto. A sua lenta aprendizagem. A precisão do gesto, entalhado bem fundo na memória do corpo.
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Estacionamento privativo

 
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A escola dos homens aranha


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A Música Toda



Tu sabe-la toda. Com essa carinha não me enganas, tás a ver se me dás música. Fazes-te sonso e tás-me é a dar música. Não penses que eu caio nessa, que eu não vou em cantigas. Olha-me este, olha, a ver se me dá música. Tu tens é a música toda. Vai dar música a outro… 

Toda a vida ouvi expressões destas. A maioria das vezes até estava inocente. Sim, que eu não sou propriamente um tipo com uma grande lábia e não estou aqui para enganar ninguém. Creio mesmo que, na maior parte do tempo, me deixei embalar com cantigas e falinhas mansas. Feitios!

Mas agora é mesmo a sério. Ó p’ra mim a dar-vos música:


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Lisboa domingueira

 
 
 
É Domingo e está calor. Verão precoce. O tempo anda estranho, trocado, as estações baralhadas. Acho que o tempo sempre esteve estranho e com as estações baralhadas, pelo menos desde que ouço que o tempo está estranho e trocado. Desde o tempo em que me lembro de se falar do tempo. Esta tarde não é de Agosto e, embora pareça, é melhor do que em Agosto. Em Agosto não há lisboetas em Lisboa e a cidade parece o cenário de um filme de ficção, daqueles em que as ruas vazias, abandonadas, são de repente invadidas por gente estranha, atacada por um vírus demente, os turistas. Mas hoje não, aqui não, é apenas um Domingo indolente de Maio, em que os jardins da beira-rio se encheram de alfacinhas em busca de um pouco de frescura, na brisa que vem do rio ou na doçura de um gelado. 
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