diário gráfico


Ao meu lado, uma mulher jovem pousa na perna azul uma mão de unhas pintadas em diagonal vermelho, brilhante. No anelar, um anel de metal branco e liso acentua um tom cuidadosamente misterioso. É bonita mas não gosto dos sapatos.
Do outro lado, um grupo de homens estrangeiros, de pele muito escura e traços quase europeus (seja lá isso o que for), asiáticos, talvez do Bangladesh, seguram nas mãos maços de papéis oficiais que encerram o seu futuro de cidadãos residentes neste país quase europeu.
Na televisão passa o programa da tarde que é igual ao programa da manhã, só que é à tarde. Donas de casa (nunca gostei desta expressão) e reformados de ambos os géneros batem palminhas ao ritmo de uma música que não oiço, uma mulher gorda e muito loura canta e a anfitriã rege tudo com um sorriso maternal e triunfante de abelha-mestra, de cerimónias.
Nos auscultadores enfiados nos meus ouvidos, Piazzolla e Gary Burton esgrimam instrumentos, num duelo feito de cumplicidades, e é estranho, no enorme ecrã à minha frente, ver aquelas pessoas a moverem-se ao ritmo da distância que separa o planeta onde vivem da realidade paralela onde eu estou sentado. Burton martela as notas a atapetar os passos elegantes do bandoneon num bailado perfeito que contrasta com as imagens da cantora loira e gorda a ensaiar bamboleios de pato nos saltos muito altos das suas botas de cano muito alto.
De repente, os números no monitor passam inesperadamente rápidos – gente que desistiu, com certeza – e a minha vez está quase a chegar.
Sou o 164. É agora.

Afinal não é aqui, é no outro Registo.

Olha a minha vida!...

12 comentários:

PC disse...

Francês...sim...

http://www.youtube.com/watch?v=c45FtDhdDoY

Bjs

mfc disse...

A espera permite-nos pensar em vez de desesperar!

CybeRider disse...

Com prazer constato que o teu mundo real é (realmente) um Photomelomanias! Já me tinha ocorrido que gostava que os meus amigos vivessem num mundo como este! Por mais voltas que se dê, é sempre difícil dizer quando é "a nossa vez", ainda que todo o projecto aponte para uma só probabilidade! Nessas coisas há sempre uma que me espanta: para os que desistem, a vez deles chega normalmente antes do que eles esperavam.

http://youtu.be/oBheLOmtf3c

Abraço

Chapa disse...

Retrato do mundo real em que vivemos, o caçador desceu à terra e tropeçou na burocracia, verdadeiro tango lusitano.
http://youtu.be/ZAS7pv87CJc

José Manuel Vilhena disse...

Um pouco mais fragmentado,com um pouco mais de interferências,mais planos paralelos e era perfeito.Assim fica quase excelente.OK, um Excelente-, como se isso existisse também.
É pá, estou a ver testes,de vez em quando fujo,mas fica sempre aquele som qrrrr,prrst,das interferências...paralelas.
:)

Anónimo disse...

bureaucracy is like a prison
and I hate when people are numbers
you are Zé and not 164

http://www.youtube.com/watch?v=1G4isv_Fylg&ob=av2e

beijos

the dear Zé disse...

JMVilhena, se o comentário se refere à fotografia, esta foi tirada assim a modos, digamos, "candid camera", com a máquina ao colo para não dar nas vistas na loja do cidadão de Setúbal em 2009 e mesmo assim é a melhorzinha da meia dúzia que consegui tirar...

se é o texto, foi escrito há dois dias na mesma loja enquanto estava de facto à espera no sítio errado e aí... foi o que saiu...

abraço

L.Reis disse...

Esta fotografia causou-me calafrios na espinha numa lembrança muito terra-à-terra de várias horas passadas numa loja do cidadão, onde descobri em mim verdadeiros sintomas terroristas e outras coisas que não vou revelar (basta dizer que tive o meu "cartão de cidadão" repetido 3 vezes, pois os senhores insistiam em dar-me nomes que eu não tinha...eu, que nem pinto as unhas e tenho sapatos muito giros...enfim)
Passando para outra dimensão, parece-me que isto de "esperar a vez" é uma daquelas mentiras(mais uma) que nos ensinaram quando éramos pequeninos, talvez para não atropelarmos a vida, para não lhe passarmos à frente, que a educação é uma coisa muito bonita. Eu, como sou bem-comportado costumo fingir que espero, mas qdo chega a minha vez, já não estou lá, não porque desisti, mas porque me aborrece fingir sempre no mesmo lugar :)
Um beijo!!

luísM disse...

Mas é mórbido e de humor muito negro.
Estamos numa nova era, a do rasganço progressivo duma etapa de desenvolvimento. A do desnorte governativo e da paralisia estupefacta duma população com falta de oxigénio cerebral.
É a era do presidente mendigo e do governo avarento, que deixa estragar as coisas para aferrolhar nos bancos.

Tudo isto parece um cartoon, mas não podemos voltar a página do jornal.

at disse...

é preciso estar preparado
http://youtu.be/nUfFH1OQF6U

IRIS disse...

é a tal esquizofrenia da(s) realidade(s) que cada vez mais demasiadas vezes todos os dias sentimos sugar-nos a sanidade física e mental. mantê-la (a sanidade) é uma dança de par, de complexa subtileza, entre o dentro e o fora de cada um de nós. o passo é, a cada momento, único e intransmissível, às vezes faz doer o corpo por dentro e por fora (a liberdade também :-))

para iniciar

http://www.youtube.com/watch?v=8d6bGWbywW0

para mediar

http://www.youtube.com/watch?v=ArkzeeGdwHE

para salvar

http://www.youtube.com/watch?v=Q0tQPodGgeM

beijo do mundo de cá

ZEKARLOS disse...

eheheheheh é sempre assim.
Abraço