beijar um anjo




Quando eu era miúdo, pequeno, nos primeiros anos da primária, beijei um anjo. Um dia levaram-me, a turma toda, a um funeral. Não sei se foi o meu primeiro funeral, não me lembro, mas impressionou-me toda aquela gente a andar devagarinho e, quase, em silêncio (na minha terra, que era vila nesse tempo, os funerais faziam-se a pé pela estrada principal, sem vergonha de existirem ou de interromperem o trânsito). Pareceu-me enorme a multidão que se fechava à minha volta e me tapava a luz e o caminho, de modo que fui arrastado, quase sem me aperceber, para dentro do cemitério. Seguíamos atrás do irmão, ou irmã, já não sei, de um colega nosso, que morreu com poucos meses. A certa altura a multidão formou uma clareira à volta de uma campa aberta com um buraco, que me pareceu estranhamente estreito, e fomos empurrados para o centro, para junto de um pequeno caixão (que a minha memória me diz ser de um branco brilhante, pérola ou assim) em cima de um suporte baixo e com pernas pretas. Puseram-nos em fila, eu sem saber porquê, até que fiquei bem em frente ao féretro (foi quando aprendi esta palavra que nunca tinha ouvido) e alguém me empurrou suavemente pelo ombro e me disse quase ao ouvido: vá, dá um beijo ao anjinho…

E eu dei. Era frio e cheirava a flores murchas, apesar da pilha de ramos e coroas que se acumulava à volta. E este não tinha asas, aquelas asas de penas de pássaro como nas gravuras do catecismo. Havia dois tipos de anjos, como toda a gente sabia, os grandes e loiros de túnica, com asas enormes no meio das costas e espadas flamejantes em punho, e uns pequenos, gordinhos e despidos que mais parece que as asas lhes saem pelos ombros. Este era pequenino, quase só um monte de cetim brilhante e um rosto baço de olhos fechados, uma touca de pérola sobre a cabeça demasiado grande...

Não sei como perdi a turma, recordo-me apenas de repente estar só e de um interminável regresso a casa. Os passos arrastados com o peso daquele anjo que me agarrava os ombros, os braços curtos apertados com força à volta do pescoço, a puxar-me para trás, o ar frio, líquido e grosso a queimar-me a garganta (era inverno, lembro-me que era inverno), os olhos molhados a adivinhar o caminho que mal via. E de ser noite. E da minha mãe, recortada na ombreira da porta, com aquele ar de quem me vai ralhar, isto é que são horas, e do seu olhar encontrar o meu e emudecer as palavras, e da luz dos seus olhos e do sorriso tão doce que me fez então soltar os ombros e os pés, e as pernas a correr mais rápidas que o seu tamanho até àquele abraço, que me levantou do chão e me levou em silêncio para dentro de casa…

E os anjos nunca mais foram meninos gordos nem tiveram asas nem empunharam espadas flamejantes. Apenas uma touca cor de pérola numa cabeça demasiado grande, o corpo perdido no meio do cetim, tão leve que mal o sinto quando às vezes vem poisar no meu ombro.

20 comentários:

the dear Zé disse...

E pronto. Este poste até se podia chamar "para acabar de vez com os anjos", estou farto, já é demais e é a última vez que falo deles aqui. Quase que juro.

IRIS disse...

os anjos, como outras coisas que habitam em nós desde sempre e não se sabe muito bem como, têm essa característica de não acabarem por elas e exigem-nos actos assim violentos. uma violência de furacão lento, que nos vai embrulhando devagarinho, toca a pele, toma os poros, entra na corrente sanguínea e... o resto já não se descreve assim.
se conseguires terminar aqui com os anjos, já não se lamenta, terás terminado da forma mais bela que neste momento (me) é possível imaginar. todo o fim se deseja assim.
um beijo

(o clik em que ficar para depois)

CybeRider disse...

Se tiveres mais textos desses podes continuar a falar de anjos à vontade, mas acho que já te tinha dito.

http://www.youtube.com/watch?v=I9DdyBHxGXQ

Chapa disse...

Grande epitáfio para os anjos.
http://www.youtube.com/watch?v=CC_8g_QRTLY

Chapa disse...

Podia lá deixar passar a oportunidade sem afixar estes anjos.
http://www.youtube.com/watch?v=RcvyivcZhn8

Ma'naChoca disse...

http://www.youtube.com/watch?v=hbe3CQamF8k

Angel Corrochano disse...

Hay vivencias que perduran siempre en nuestra memoria, que nos marcan. Cuantas cosas provienen de aquella infancia tan querida. Cuantos miedos, cuantas angustias, y siempre ese baile peculiar con la muerte, que de alguna manera podíamos ver lejana. Es un relato cojonudo, amigo, una perla en el recuerdo.
Cuando la fotografía deja de un lado el puro esteticismo, surge la razón de ser del arte.
Fuerte abrazo compadre

S disse...

Nunca acreditei em anjos, mas gosto muito de fotografar cemitérios. A segunda foto está particularmente bonita. Transmite beleza e paz.

José Manuel Vilhena disse...

grande texto,este.Entra dentro,bem dentro.Também gosto muito da fotografia do meio.
:)

kiko esperilla disse...

Me ha sobrecogido el texto compadre. Siempre me han parecido siniestros los ángeles de los cementerios.

IRIS disse...

aqui vai uma sugestão de clik, de um filme que não vi e do qual sei quase nada, mas gostei desta cena aqui. para o caso de não achares muito mau :-)

http://vimeo.com/1592599

bisous

Catalina Ginard disse...

Hay vivencias que marcan, que estremecen y perduran en nuestra memoria, experiencias que tal vez en su día no entendiamos...bonitas tus fotografias, una magnifica entrada...un abrazo

chanclas disse...

Viendo estas fotos entiendo tus sensaciones.
Estoa angeles poco tiene que ver con aquellos angelitos de los cuentos de nuestra infancia.
Saludos

ana barata disse...

que eloquente maneira de "acabares" com eles! (será que foi mesmo de vez?)

deixo-te uma cena do meu filme preferido que conta a história de um anjo que precisava de ganhar as suas asas :http://www.youtube.com/watch?v=FcMgt3JQDxw&feature=related

beijo

Yanneck disse...

T A
E X C E L E N T E
X J
T F O T O S
O S

apeteceu-me criar
Abraço

Clarice disse...

Adorei as palavras...

beijo

leonor disse...

Bonito texto, lindíssima a segunda fotografia!
deixo-te um anjo raro:

http://www.youtube.com/watch?v=jKtwYFcRC7s&playnext=1&list=PLD12A37A467613D89&index=21

deixo-te também um beijo

Álex disse...

http://www.youtube.com/watch?v=v9qr-YKWzq0

L.Reis disse...

...é que não acredito nem um bocadinho (sempre tive um problema de fé) :D
Aposto que os anjos hão-de voltar...não estão eles talhados na pedra da memória?

foto su tela disse...

Very nice photo!!